Marcelo de Paula Xavier


Editor do Canal do Leite, Administrador de Empresas e Mestre em Agronegócios

canaldoleite@terra.com.br

PUBLICAÇÕES

Como a vaca Jersey evoluiu para se tornar um fenômeno global

01 de dezembro, 2023

Escrito por Marcelo de Paula Xavier, M.Sc.*

 

Um certo dia no início do século 19, Michael Fowler (comerciante inglês que foi o mais importante importador de gado das Ilhas do Canal da Mancha1 naquela época) viajava por uma estrada ao norte de Londres, quando encontrou um homem que levava uma vaquinha para uma feira na cidade de Barnet (Inglaterra). Era um tipo de vaca que ele nunca tinha visto antes. Ao perguntar ao tropeiro sobre o animal, soube que o patrão do homem havia sido presenteado com a vaca, mas não gostou dela e ele (o tropeiro) foi enviado para vendê-la pela quantia de £9.

O recém-casado Sr. Fowler achou que seria um bom presente para sua esposa e ofereceu 7 libras pela vaquinha. O tropeiro recusou a proposta e seguiu para a feira, onde seu pequeno animal foi motivo de chacota e não teve nenhuma oferta. Tendo sido totalmente ridicularizado, o homem voltou para casa desanimado. Mas, como quis a providência, Michael Fowler reencontrou o tropeiro em seu retorno e repetiu a oferta de £7, a qual foi aceita de bom grado.

Aquela pequena vaca Jersey pariu algumas semanas depois e começou a produzir 14,25 libras de manteiga semanalmente. Este rendimento surpreendente – juntamente com a ótima qualidade do produto – impressionaram o Sr. Fowler de modo que ele quis saber a sua origem. Ele descobriu que o animal tinha sido importado para o Sr. John Shurmer, que costumava comprar algumas vacas das Ilhas do Canal.

Michael Fowler comprou mais vacas do Sr. Shurmer e, prontamente, as revendeu em Londres. Porém, o custo da transação levou o jovem a viajar para as ilhas, ele mesmo, onde logo estabeleceu um negócio regular de importação do que então era conhecido como “Alderneys”. O nome “Alderney” era dado a todo o gado vindo das Ilhas do Canal, porque este era o último porto de escala antes de chegar ao continente inglês (em Southhampton).

Isso tudo aconteceu em 1811. Nos anos que se seguiram, Michael Fowler visitou regularmente a Ilha de Jersey e importou centenas de animais anualmente. Com sua vasta experiência na compra de gado leiteiro, ele incentivou e ajudou os fazendeiros da Ilha a melhorarem bastante a alimentação e a criação de seus animais.

Fechamento da Ilha de Jersey para gado vivo

Um fato importante para a raça ser moldada como a conhecemos hoje foi o fechamento da Ilha de Jersey para a entrada de animais e material genético bovino. 

Entre 1764 e 1775, os controles aduaneiros oficiais registravam 6.306 animais das Ilhas do Canal transportados para a Inglaterra. Estes números, de acordo com E. Parmalee Prentice2, eram muito maiores do que constava nos registros portuários ingleses. Ele afirma que esta diferença era causada pelo gado francês, o qual vinha para a Ilha de Jersey e depois era enviado para a Inglaterra como sendo nativo da Ilha. 

Desta forma, podia-se colocar nos documentos de exportação que o gado francês era "criado" na Ilha, a qual é uma dependência da Coroa Britânica e, portanto, isenta dos impostos especiais de consumo cobrados sobre o gado proveniente de países estrangeiros.

Possivelmente por pressão das autoridades inglesas, em 1763, foi introduzida uma legislação na Ilha de Jersey impedindo a importação de gado, "para proteger o mercado local de produtos agrícolas e impedir a importação de doenças".

O fechamento da Ilha permaneceu até o início deste século, quando a legislação foi alterada para permitir a importação de material genético (sêmen) de touros Jersey. Em 2008, pela primeira vez em mais de 200 anos, foi autorizada a introdução e o uso de reprodutores estrangeiros pelos criadores da Ilha. 

Ou seja, a vaca Jersey é uma consequência do seu entorno histórico, da Ilha e do povo de Jersey. Durante um longo período de tempo, ela evoluiu graças aos esforços dedicados de criadores comprometidos com a sua melhoria, para se tornar uma máquina de produção de leite de altíssima qualidade. 

Evolução da raça Jersey e fundação da RJA&HS

Outro fato marcante no contexto histórico da raça foi a fundação da Royal Jersey Agricultural & Horticultural Society (RJA&HS). Na virada dos séculos XVIII e XIX, sociedades agrícolas estavam sendo formadas em todo o Reino Unido. A RJA&HS foi fundada em agosto de 1833, como uma forma de melhorar as fazendas e, principalmente, o gado da Ilha. O primeiro secretário da nova sociedade foi o coronel John Le Couteur, ajudante de campo do vice-governador de Jersey, general Thornton, que foi nomeado presidente da entidade.

Além disso, Fowler e Le Couteur – em um esforço para melhorar a conformação do gado Jersey sem prejudicar suas qualidades desejáveis – elaboraram uma "Escala de Pontos" para as vacas e touros da Ilha, a qual foi adotada pela RJA&HS e se tornou o primeiro sistema de classificação linear para vacas de leite da história.

Em março de 1834, foi realizada a primeira exposição de gado na Ilha de Jersey, no Cattle Market, na cidade de St Helier (muito perto de onde hoje estão situadas as icônicas esculturas de bronze do gado de Jersey). Foi a partir dessas primeiras iniciativas, com a exposição do gado da Ilha sendo “julgado” pela escala de pontos aceita, que a raça Jersey iniciou seu progresso para se tornar a segunda maior raça de gado leiteiro do mundo.

Mas, como é que esta pequena vaca leiteira, proveniente de uma ilha minúscula se tornou um fenômeno global? A principal razão é a capacidade do Jersey de produzir leite da mais alta qualidade e de produzir este produto a partir de uma quantidade relativamente modesta de comida, graças à sua excelente eficiência alimentar.

Derrick Frigot tem um trabalho espetacular de pesquisa sobre as origens e o desenvolvimento do gado Jersey no mundo. Ele explica, em seu livro “Pioneers of the Jersey Breed”, que os fazendeiros da Ilha de Jersey dedicaram as suas vidas ao desenvolvimento e melhoramento deste gado. Segundo ele, a história da vaca Jersey se confunde com a história de homens e mulheres que ajudaram a raça a se transformar na produtora mais eficiente de produtos lácteos de alta qualidade, levando o nome de sua Ilha natal para todo o mundo. 

Frigot comenta que, no início de 1800, a vaca Jersey já era “… celebrada não apenas pela sua beleza, mas pela riqueza do seu leite e pela excelência na produção de manteiga”. Mas, na década de 1830, a raça Jersey ainda apresentava grande variação de tipo e cor, com animais brancos, marrons escuros e amoreiras. Como as vacas de pelagem "marrom-mel" eram as mais vendidas, a raça foi sendo desenvolvida nesta direção.

Naquela época, a melhoria acentuada do gado da Ilha garantia uma forte procura por produtores de leite estrangeiros. Em 1866, havia 12.037 cabeças de gado espalhadas por mais de 1.000 fazendas na Ilha, com quase 2.000 cabeças sendo exportadas anualmente. Então, foi reconhecida a necessidade de se fazer o registro das informações dos animais (pedigree). Procedeu-se, desta forma, a identificação dos estoques de gado na Ilha e estabeleceu-se o Jersey Herd Book em março daquele ano, com as primeiras inspeções de rebanhos sendo realizadas já no mês seguinte (abr/1866).

Cabe destacar que a ancestralidade de todo o gado Jersey registrado no mundo pode ser rastreada até o livro genealógico da Ilha, tornando-o um censo completo da população.

Como já mencionado, três características foram muito importantes para a popularidade do gado proveniente da Ilha de Jersey: o tamanho relativamente pequeno, a qualidade superior do leite e a alta eficiência alimentar. Estas qualidades foram as razões pelas quais, já no século XVII, estava bem documentada a presença desses animais a bordo de navios que se dirigiam para o novo continente, a América do Norte.

Nos Estados Unidos, raça atingiu seu ápice produtivo. Em 2021, por exemplo, a lactação média oficial do gado Jersey americano atingiu (em 305 dias): 9.217 kg de leite, 451 kg de gordura e 343 kg de proteína. Isto se traduz em 30,2 kg de leite por dia, com 4,90% de gordura e 3,72% de proteína. Cabe destacar que é esta é média geral do país, mas há rebanhos com produções acima dos 38 kg por vaca dia.

 

Notas:

1 - As Ilhas do Canal (Channel Islands, em inglês) são um grupo de ilhas situadas no Canal da Mancha, ao largo da costa francesa. As Ilhas são Jersey, Guernsey e outras ilhas menores próximas.

2 - E. Parmalee Prentice escreveu o livro "The History of Channel Island Cattle, Guernseys and Jerseys", publicado privadamente em 1940 e reimpresso em 1942 em 'American Dairy Cattle'.

 

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*Marcelo de Paula Xavier, formado em Administração de Empresas pela Universidade Estadual de Ponta Grossa, com Mestrado em Agronegócios pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Foi presidente da Associação de Criadores de Gado Jersey do Brasil por 2 mandatos consecutivos e atualmente é editor do Canal do Leite.

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