Leite e soberania
07 de dezembro, 2025
Escrito por Paulo do Carmo Martins
Dezembro chegou trazendo a notícia tão esperada pelo setor. Sim! O Governo reabriu a investigação sobre a existência de dumping na importação de leite em pó. Isso é o fim do caminho? Não, apenas o começo!
A prática desleal de comércio, por meio de dumping, fica evidenciada quando um produto é comercializado no exterior a preço menor que no seu mercado interno. Esta prática é abominada desde a criação do GATT, no final da Segunda Grande Guerra, por criar uma competição em condições artificiais.
A prática de dumping nem sempre é facilmente documentada. Por este motivo, é necessária investigação técnica minuciosa. E foi isso que a CNA solicitou ao Governo. Mas, para a surpresa geral, os técnicos em comércio exterior entenderam que leite em pó não tem semelhança com leite fluido e suspenderam a investigação, ao desqualificar a CNA como representante dos interessados, já que não fala pela indústria. Cometeram um imenso erro burocrático, por visão restrita. Afinal, a prática de dumping afeta a competitividade de produtores nacionais, o que os faz diretamente interessados nesta questão.
Os produtos no comércio internacional são classificados em dois grupos. Produtos “tradables” são os comercializáveis no mercado internacional. Já produtos “non-tradables” são os consumidos somente no mercado interno, sem serem transacionados no comércio internacional. Numa investigação de dumping, o olhar tem de ser para produtos “tradables”. No setor lácteo, são exemplos de produtos “tradables” o queijo, a manteiga, o leite em pó, o soro em pó, dentre outros.
Já o leite fluido, processado ou não, é exemplo típico de produto “non-tradable”. É possível que haja transação de leite fluido entre países. Mas, a regra é comercializar na forma de leite em pó e não na forma líquida. É muito caro transportar leite fluido por grandes distâncias. Não faz sentido transportar água! É por isso que existe navio petroleiro, mas não existe navio leiteiro. Lácteos usam containers em navio cargueiro comum.
A decisão do Governo de reabrir o processo investigatório para corrigir o erro burocrático é fruto de vigorosa, desgastante, cansativa e contínua mobilização de entidades de produtores e da indústria de laticínios, ocorrida nos últimos meses, em diferentes estados da federação, com destaque para a CNA, a patrocinadora da petição, e para a OCB e a ABRALEITE.
Este movimento do setor produtivo nacional recebeu acolhida na Câmara dos Deputados, com o devido destaque para os deputados federais mineiros Domingos Sávio, Zé Silva e Ana Paula Leão, além dos deputados sulistas Heitor Schuch (RS), Rafael Pezenti (SC) e Elton Welter (PR), dentre outros. Coube aos ministros paulistas Geraldo Alckmin e Paulo Teixeira, sensíveis aos reclamos, levar o pleito para reavaliação dentro do Governo. Isso não é tarefa fácil. Afinal, a área econômica sempre gosta quando os preços dos lácteos deprimem a inflação, como ocorre agora.
Existe diferença entre eficiência, eficácia e efetividade. Ao reabrir o processo, o Governo mostrou eficiência, ou seja, fez o que precisava ser feito, da maneira mais indicada, corrigindo o erro burocrático. Mas, é preciso ter eficácia, garantindo que neste verão não iremos ter aumento da enxurrada de leite importado que continua chegando ao Brasil. É preciso baixar salvaguardas imediatas, unilaterais e temporárias. Não é preciso criatividade. Basta revisitar decisões tomadas em momentos como esse, ao longo deste século. Mas, e para chegar à efetividade?
O discurso liberal é simples: se importamos leite é porque não somos competitivos. Logo, não podemos fazer o consumidor pobre pagar pela ineficiência do setor. Quem é competente, que se estabeleça! Pois é... toda afirmação simples para um cenário complexo sempre embute erro grave. Afinal, há motivos históricos, estruturais, que nos colocaram como tradicionais importadores e que eu já discuti em outros artigos. Liberar plenamente a importação, sem restrição, é visão simplória.
Desconheço quem esteja defendendo a construção de muralhas tarifárias ou não tarifárias intransponíveis. O mercado brasileiro historicamente importa cerca de 3% do que consome. Mas, estamos convivendo com importações em percentual de dois dígitos.
O mercado internacional de lácteos sempre teve interferência de Governos, na formação de preços dos exportáveis e na barreira de importáveis. Desconhecer esta realidade, nos coloca como vestais, em meio à destruição de um setor estratégico. Em termos de comércio exterior, em qualquer setor, qual país é realmente liberal?
Os lácteos no Brasil geram R$ 170 bilhões/ano. É o setor, em toda a nossa economia, que mais renda e emprego (direto, indireto e induzido) dissemina no interior do Brasil, de modo contínuo, como já mostrei em artigo técnico. Mais que isso, o Brasil é o único grande mercado lácteo em expansão em todo o mundo ocidental. Nos demais países, quando estão em expansão, são mercados pequenos, ou se são mercados grandes, já estão consolidados, sem expansão.
Retomar a investigação mostrou eficiência do Governo. Se adotar salvaguardas urgentes, ainda em dezembro, também mostrará eficácia. Mas, é preciso conquistar a efetividade, ou seja, eficiência e eficácia duradouras para o setor. Para isso, o melhor caminho é reunir competências de representantes dos produtores, dos laticínios e de técnicos do Governo, para uma discussão visando construir políticas de longo prazo para o setor. O conteúdo precisa ser técnico, a decisão precisa ser política.
Técnicos das entidades privadas e do Governo podem desenhar um Plano Estratégico, desde que não haja muitos membros envolvidos, para que se mantenha foco e velocidade. Um ponto de partida? O projeto de lei da então deputada federal Aline Sleutjes, resultante de visitas técnicas feitas em todas as regiões do Brasil, com a participação de deputados Domingo Sávio, Zé Silva e de outros.
Fonte: Revista Balde Branco





































